A transmissão Psíquica Geracional e suas implicações na escolha amorosa – um olhar psicanalítico - Terapeuta de Casal
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A transmissão Psíquica Geracional e suas implicações na escolha amorosa – um olhar psicanalítico

A transmissão Psíquica Geracional e suas implicações na escolha amorosa – um olhar psicanalítico

por Renata Gomes de Medeiros - CRP 05/70198

Todo ser humano nasce imerso em uma cultura previamente estabelecida, na qual o ambiente é preparado conforme a idealização dos pais com relação ao filho. O lugar da criança inicialmente é criado pelos pais como "Sua majestade o bebê", que é ao mesmo tempo o centro das atenções e o depositário dos desejos narcísicos de seus genitores, ou seja, aquele que pode cumprir os sonhos e desejos não realizados dos pais, como postula Freud (1914) em Introdução ao narcisismo.

Assim ocorre na transmissão psíquica geracional, gerando heranças psíquicas estruturantes que podem ser patológicas. Tais heranças podem ser de ordem psíquicas, sociais, culturais ou religiosas. O receptor desses conteúdos específicos, dependendo do tipo de transmissão e cargas afetivas, possui pouca gerência e decisão sobre tais conteúdos. O herdeiro, para se diferenciar, precisa realizar um trabalho psíquico sobre tais transmissões. A clínica assume um importante papel de ser um espaço de promoção de saúde e de elaboração dos conteúdos recebidos, buscando criar sentidos para a família como um todo.

 

Transmissão geracional: facetas da herança

 

No campo da psicanálise, o estudo é direcionado a heranças familiares, que um sujeito recebe de seus antepassados (pais, avós, bisavós, tios etc.), que são da ordem do psiquismo, pensando principalmente em conteúdos transmitidos inconscientemente. Na abordagem psicanalítica encontramos a distinção de duas formas de transmissão das heranças psíquicas: a transmissão intergeracional e a transmissão transgeracional. A transmissão intergeracional diz respeito a todo o conteúdo que contribui para a formação do sujeito e sua base para interação social, bem como para sua percepção do mundo e de si. Em geral, os pais são responsáveis por transmitir a educação dos filhos, assim como a prover proteção, sustento financeiro, alimentar e afeto. Assim, o sujeito circunscrito na família, tem iniciado o seu processo de desenvolvimento. Desse modo, os pais são como pontes que ligam a criança em formação ao mundo externo. Segundo Cardoso e Baptista (2020), cabe aos pais o papel de ensinar a seus filhos valores, ética, cultura, regras, crenças, ou seja, a memória e o histórico familiar que eles mesmo aprenderam de seus próprios pais. Portanto, trata-se de uma transmissão familiar que é transmitida entre o contato entre gerações de uma maneira criativa. Cardoso e Baptista (2020) afirmam que, sendo a família um organismo vivo, ela pode proporcionar, no decorrer do tempo, modificações nesses conteúdos herdados. Contudo, eles postulam que esses herdeiros, ao constituir família, em geral tendem a assemelhar os ensinamentos direcionados aos filhos que foram aprendidos na família de origem. Em outras palavras, os pais costumam educar os filhos perpetuando o conjunto ou parte do conjunto da herança recebida (crenças, valores, etc.). Porém, este tipo de transmissão intergeracional refere-se à possibilidade de modificações na linha do tempo, pois cada herdeiro que os recebe coloca um pouco de si diferenciado da família de origem conseguindo respeitar a subjetividade individualizada de cada sujeito nas diferentes posições geracionais. Todo sujeito é constituído por uma herança, e a saúde psíquica neste tipo de transmissão está na capacidade de metabolizar aquilo que é transmitido.

Com relação a formação psíquica da família, Eiguer (1985) postula a presença de organizadores psíquicos para a vida grupal familiar. O principal deles é "o eu familiar", que é para o autor um "investimento perceptual de cada membro da família, que lhe permite reconhecê-la como sua, numa continuidade têmporo-espacial" (p. 38), cujos componentes são: sentimento de pertença, o habitat interior e o ideal do ego familiar. O sentimento de pertença familiar está ligado ao sentimento que cada membro da família experimenta e compartilha no grupo familiar como a proximidade entre as pessoas, as experiências compartilhadas do passado, as formas peculiares de comunicação, a sensação de ser percebido e de ser participante de um grupo onde há troca de amor.

Desse modo, podemos concluir que, para o grupo familiar, a transmissão geracional possui uma função importante e salutar da transmissão, uma vez que proporciona a perpetuação de valores e tradições para a evolução das vivências das futuras gerações familiares. Esse processo de transmissão, portanto, é um facilitador da sobrevivência humana, porém, somente da forma saudável intergeracional que desenvolve concomitantemente a autonomia dos sujeitos.

Já a Transmissão Transgeracional diz respeito a conteúdos que são transmitidos entre as gerações de conteúdos difíceis de lidar, traumáticos para o seio, de uma forma não elaborada psiquicamente, ou seja, sem simbolização. Esses conteúdos são como fantasmas que podem assombrar o sujeito durante a vida ou parte dela. O fantasma é da ordem de alguma vivência ou experiência emocional que não se consegue traduzir em palavras, manifestando-se em forma de lacunas, angústias, estados confusionais, em razão de estar ligado a fantasias de vivências anteriores.

A Psicanálise, no contexto da Terapia de Família e Casal, oferece um olhar para esta clínica sobre a transmissão psíquica transgeracional, entendendo que essas heranças consistem em conteúdos não revelados que herdamos de nossos antepassados. Neste processo de transmissão, o sujeito de uma geração elege, inconscientemente, um indivíduo da geração seguinte para transmitir esses conteúdos indesejados.

Quanto menos diferenciado esse herdeiro for, mais chances ele tem de repetir a herança e sintomas, em muitos casos, mesmo sem compreendê-los. A herança psíquica pode ser uma angústia, uma história de violência ou traumas. No futuro o herdeiro poderá transmitir esses conteúdos a um descendente, de modo que este processo se perpetue em gerações vindouras como um fantasma perpetuando-se a transmissão psíquica transgeracional. Uma vez que essa forma estruturante se instala no psiquismo de um sujeito, pode deixar pouco espaço para que ele exerça sua subjetividade, por isso compreende-se a importância de se buscar ajuda psicológica.

Eiguer (1985) afirma que o conceito de "organizadores psíquicos" é relevante para que possamos compreender a origem dos fantasmas familiares e postula sobre três importantes organizadores psíquicos, a saber: a escolha do parceiro amoroso (é deste que iremos tratar), o eu familiar e a interfantasmatização. Para ele, um organizador é: "uma formação coletiva para a qual contribuem os psiquismos pessoais, que concentra representações psíquicas e familiares comum de emoções na consolidação dos vínculos recíprocos" (Eiguer, 1985, p. 29).

Um dos principais organizadores psíquicos postulados pelo autor é a escolha do parceiro amoroso (Eiguer, 1985). Essa escolha, ainda que seja feita de modo inconsciente, poderá proporcionar que o portador da herança reproduza seu repertório psíquico herdado, podendo não somente compartilhar os aspectos geracionais como também garantir a estabilidade e a perpetuação dos aspectos do grupo originário. Analisaremos os tipos de escolhas postuladas por Freud, segundo a leitura deste autor feita por Eiguer (1985). No que tange a escolha do parceiro amoroso, Eiguer (1985) faz uma alusão ao regime de liberdade condicional, uma vez que, para ele:

 

a escolha da parceira(o) não se faz ao acaso. O inconsciente individual é utilizado. Esta escolha terá um valor semelhante ao das formações de compromisso inconsciente, (...). Podemos estimar a importância desta escolha para a consolidação e a organização inconsciente do casal, os dois parceiros entrecruzam objetos inconscientes: a relação sentimental se alimenta desta descoberta de um parceiro que, como escreve Freud (1905), é uma redescoberta e ao mesmo tempo um resultado do amor infantil (Eiguer, 1985, pp. 31-32).

Nesta citação o autor nos fala que tal escolha não é feita ao acaso, mas com uma intencionalidade inconsciente para aplacar a busca de uma completude da infância. Essa união gera novas possibilidades no sentido de que, juntos, podem criar novas realidades. Por outro lado, se apenas um desses indivíduos estiver muito indiferenciado, essa nova relação servirá como uma potencial incubadora para a multiplicação ou perpetuação dos conteúdos da transmissão psíquica.

Com relação à transmissão de heranças transgeracionais, podemos concluir que tais heranças estão contidas de conteúdos carregados de sofrimento e, quando é assim, a abertura para transformação tanto do próprio sujeito quanto desses conteúdos torna-se mais difícil. Cada geração tenta dar conta desses elementos e, se não consegue, eles vão sendo transmitidos de uma geração para outra, interferindo na autonomia do indivíduo. Para o sujeito processar esses elementos depende de como ele será afetado por essa demanda familiar de herdar e de como ele irá conseguir ou não ter autonomia no processamento dessa herança e em que medida o sujeito pode dar contribuições para o grupo familiar e em que medida o grupo poderá paralisar o sujeito. Esse fenômeno se apresenta na repetição de eventos. A repetição nada mais é do que aspectos que não foram processados de forma palatável em gerações anteriores e que estão se repetindo no momento presente. Quando isto se evidencia, surge uma oportunidade para se trabalhar o grupo familiar ou de casal em psicoterapia, o que é fundamental para evitar que se tornem sintomas. Na clínica isso se apresenta no discurso que a família ou o casal traz sobre esses eventos.

 

Considerações finais

Um dos principais desafios da Psicoterapia de Família e Casal, do ponto de vista psicanalítico, seria o de considerar e de escutar não somente o indivíduo, mas o todo, ou seja, o indivíduo e seu contexto social e suas relações. Cada sujeito está em um jogo relacional. Como já dissemos anteriormente, é na inscrição grupal/familiar que ele se torna um sujeito. Para tanto, aqui existe um ponto de encontro entre a clínica psicanalítica e a clínica nas abordagens sistêmicas. Portanto, é fundamental no trabalho com famílias e casais considerar o espaço intersubjetivo, e, como fruto disso se passam as transmissões geracionais. Tal articulação traria uma combinação significativa entre os eventos vividos e as repercussões afetivas nas relações (Féres-Carneiro, 2014).

Podemos considerar, ainda, que outro desafio importante da psicoterapia de família e casal é tornar o setting terapêutico um lugar onde é permitido um reencontro com as fontes de perturbação e angústias. Para isso é necessário promover um ambiente seguro e propício em que o sujeito passe da repetição (do ato) para a elaboração, permitindo que se repita no setting, quantas vezes forem necessárias, as suas questões com a finalidade de facilitar um processo de elaboração de forma constante em busca de uma transformação ou ressignificação. Esse processo permitirá dar voz à famílias e casais sobre vivências afetivas que não foram simbolizadas (podendo ser da ordem do pré-verbal – do bebê, ou do não dito – não sendo pensado e compreendido em família). Assim, a clínica irá favorecer o surgimento de novas descobertas e possibilidades de organização de vida e de perspectiva de futuro e do psiquismo, buscando ressignificar o processo de transmissão e os sofrimentos que impedem o desenvolvimento de projetos de vida, bem como escolhas promotoras de saúde. Além disso o processo psicoterapêutico poderá promover alterações significativas na compreensão de lacunas antes sem sentido, como uma sombra ou um fantasma "doméstico".

À medida do possível, a psicoterapia poderá favorecer um encontro que possibilitará a comunicação dialógica e a expressão entre seus membros, de modo que possam expor camadas submersas de traumas, a passagem por crises e questões familiares do passado que ecoam e perduram esculpidas na vida desse novo grupo parental. O objetivo é que passem por uma metamorfose.

 

Referências bibliográficas

Cardoso, H. F. & Baptista, M. N. (2020). Família e integralidade (2ª ed.). In M. L. M., Teodoro & M. N., Baptista, Psicologia de família: avaliação e intervenção. Artmed.

Eiguer, A. (1985). Nascimento e organização fantasmática da família. In A. Eiguer, Um divã para a família: do modelo grupal à terapia familiar psicanalítica. (pp. 25-53). Artes Médicas.

Eiguer, A. (1998). A transmissão do psiquismo entre gerações: enfoque em terapia familiar psicanalítica. In A. Eiguer, A parte maldita da herança. (pp. 21-84). Unimarco.

Féres-Carneiro, T. (2014). Construyendo saberes en psicología: el desafío de articular diferentes teorías y prácticas. Temas em Psicologia, 22(4), 953-964. http://dx.doi.org/10.9788/TP2014.4-21

Freud, S. (1914). Introdução ao narcisismo. Obras completas (Volume 12). Companhia das Letras.

Freud, S. (1919). O inquietante. Obras completas (Volume 14). Companhia das Letras.

Renata Gomes de Medeiros

Olá. Sou a Renata Medeiros, formada em Psicologia pela Universidade Santa Úrsula no RJ, com Formação de Introdução à Psicanálise Clínica na PUC-RJ e SPCRJ. Pósgraduada em Psicoterapia de Família e Casal na PUC-RJ. Possuo, ainda, formação em Administração de Recursos Humanos pela UNESA e Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Iniciei a carreira na área de Recursos Humanos tendo mais de 20 anos de experiência em multinacionais. Tal experiência no RH contribuiu para que eu possa dar suporte emocional aos pacientes em como lidar com mundo corporativo, considerando a escassez de vagas e a competitividade, muitas vezes promotores de adoecimento psíquico engendrada no ambiente de trabalho.

Como Psicóloga, tenho experiência de trabalho no acolhimento e acompanhamento psicoterapêutico de adultos (individual e casal) e adolescentes com dificuldades diversas tais como: transtorno do pânico, transtorno depressivo, ansiedade, ideação suicida, dificuldades de relacionamento, conflitos familiares, conflitos de casal, problemas com autoestima e autoconhecimento, além de questões de gênero e sexualidade.

Tenho atuado na clínica com casais, na qual minha abordagem é a psicanalítica e sistêmica e o meu principal objetivo é ajudar o casal a ficar bem.

Busque ajuda. Estou aqui para ajudar. Aguardo sua mensagem para juntos construirmos um espaço de cuidado.